Pobre
Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!
Jeca
mercador, Jeca lavrador. Jeca filósofo...
Quando
comparece às feiras, todo mundo logo adivinha o que ele traz: sempre coisas que
a natureza derrama pelo
mato e ao homem só custa o gesto de espichar a mão e colher (...) Nada mais.
Seu
grande cuidado é espremer todas as consequências da lei do menor esforço — e
nisto vai longe.
Começa
na morada. Sua casa de sapé e lama faz sorrir aos bichos que moram em toca e gargalhar
ao joão-de-barro. Pura biboca de bosquímano. Mobília, nenhuma. A cama é uma
espipada esteira de peri posta sol chão batido.
Às
vezes se dá ao luxo de um banquinho de três pernas — para os hóspedes.Três pernas
permitem equilíbrio;inútil,portanto,meter a quarta,o que ainda o obrigaria a
nivelar o chão. Para que assentos, se a natureza os dotou de sólidos, rachados
calcanhares sobre os quais se sentam?
Nenhum
talher. Não é a munheca um talher completo — colher, garfo e faca a um tempo?
Seus
remotos avós não gozaram maiores comodidades. Seus netos não meterão quarta
perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso.
Se
pelotas de barro caem, abrindo seteiras na parede, Jeca não se move a repô-las.
Ficam pelo resto da vida os buracos abertos, a entremostrarem nesgas de céu.
Quando
a palha do teto, apodrecida, greta em fendas por onde pinga a chuva. Jeca, em
vez de remendar a tortura, limita-se, cada vez que chove, a aparar numa
gamelinha a água gotejante...
Remendo...
Para quê? se uma casa dura dez anos e faltam "apenas" nove para que ele
abandone aquela? Esta filosofia economiza reparos.
LOBATO, Monteiro. Urupês. São
Paulo, Brasiliense, 1948. p. 245-6.
VOCABULÁRIO
biboca: Casa humilde com
cobertura de palha.
bosquímano: Indivíduo dos
bosquímanos, povo sul-africano.
espipar: Esticar, estender.
peri (ou piri): espécie de junco do qual se fazem esteiras;
piripiri.
munheca: Mão.
remoto: Antigo, distante.
seteira: Fresta.
nesga: Pequeno espaço.
gretar: Rasgar.
gamela: Vasilha de madeira
ou barro.
MARGENS DO TEXTO
1. O que podemos concluir ao compararmos a personagem
de Monteiro Lobato com o índio Peri, de José de Alencar, e os bravos e
orgulhosos caboclos dos romances regionalistas do mesmo período?
2. Em Jeca Tatu, Monteiro Lobato investe contra a
idealização do caboclo, apontando algumas das suas características negativas.
Qual delas é a mais criticada no texto?
3. “Jeca mercador, Jeca lavrador, Jeca filósofo...” Este
parágrafo refere-se ao Jeca de Monteiro Lobato ou aos caboclos dos romances
românticos?
4. Você crê que Monteiro Lobato queria chamar a
atenção para uma realidade que deveria ser mudada ou pretendeu apenas
ridicularizar o caboclo? Por quê?
Exercícios
retirados de
MAIA, João
Domingues. Português: volume único.
2. ed. são Paulo: Ática, 2005. p. 344-345.